Lugar de Criação – perfil de José Aurélio, escultor

Uma porta pesada separa o Armazém das Artes de uma rua transversal ao Rossio, em Alcobaça. O espaço, criado pelo escultor José Aurélio, dista menos de um minuto do Mosteiro de Santa Maria, referência, lugar de inspiração, não de sombra. Foi naquelas ruas que o jovem o escultor auxiliou o pai, engenheiro civil, mas também onde brincou entre amigos, próximo da adega dos seus avós. O espaço que se tornaria um dos projetos da sua vida.




Para abrir a porta pesada que encerra o Armazém das Artes, é necessário um esforço extraordinário. Aos 78 anos, José Aurélio mantém-se lesto, com a destreza de quem, também pelo esforço físico, criou algumas das dezenas de obras públicas espalhadas pelo país. A preocupação do escultor, que se diz “orgulhosamente provinciano” com a cultura da sua cidade, ocupou grande parte das suas forças nos últimos anos. No início do século XX, as gentes de Alcobaça chamavam à antiga adega dos avós do escultor a “Oficina Danada”. Antes de ser adega, foi oficina onde se diz, um grupo de republicanos produziu explosivos, utilizados para impor os seus ideais.

O espaço foi convertido em galeria por José Aurélio. Projeto iniciado em 1995, viria a abrir portas apenas em 2007. Em 2012,  cinco anos volvidos à abertura do Armazém das Artes, haveria de fechar portas, depois de ali ter deixado as suas forças físicas e financeiras o escultor. Uma “loucura saudável”, fruto de uma “teimosia” irascível de um artista “obstinado”, garantem os amigos, que José Aurélio teima em restituir à cidade.

“Foi pela percepção das memórias que fomos compreendendo a criação de um espaço para atividade cultural”, garante o amigo, Jorge Barros sobre a construção da galeria. O fotógrafo cruzou-se na infância com “Zeca”, embora só anos mais tarde, com uma relação que diz ser “uma amizade frenética”, de cumplicidade humana, mas também estética, política e social. Recorda a cave da adega de Alcobaça, onde os seus pais trabalhavam, como espaço de brincadeiras na infância, onde muitas vezes convive com José Aurélio, mais velho cerca de uma década, que por lá jogava “ao hóquei” com outros da sua geração.

Na galeria hoje encerrada, o escultor tenciona ali instalar um pequeno atelier, espaço de trabalho que, à beira dos 79 anos, continua profícuo. Mantém uma agitação natural, presente nos movimentos ágeis, mas também nos gestos entre a conversa, no olhar agitado com que percorre os espaços. Da juventude guarda a barba que lhe é característica: longa, que outrora lhe conferia um sinal de irreverência provocatória, é hoje um desafio à idade. Aquela barba, nos anos 60 do século XX, era imagem reconhecível do escultor que habitou a vila de Óbidos.

História de agitações

Embora tenha saído cedo da cidade para estudar em Lisboa, primeiro em engenharia, pouco depois em escultura, José Aurélio manteve ao longo da sua vida, e produção artística, uma relação íntima com o universo próprio da sua cidade natal. Ainda como estudante da Faculdade de Belas Artes, trabalhava aos finais de semana na CECLA, antiga fábrica de cerâmica em Caldas da Rainha, como diretor artístico.

Cansado de Caldas da Rainha, onde dormia junto às máquinas industriais, acabaria por encontrar habitação própria em Óbidos, por onde costumava passar para conviver com amigos depois de trabalho de final de semana. A Ogiva foi espaço de vanguarda, onde se prestou homenagem à pintora Josefa de Óbidos, mas também onde se ouvia ao vivo o possível jazz português. A sua oficina e casa, fora convertida num espaço de culto, lugar de encontro de amigos e artistas, a maioria ligados à esquerda portuguesa, ponto de encontro entre gentes do norte e do sul, mas também de artistas estrangeiros.

A “Mão” , primeira escultura do artista em espaço público, foi inaugurada em 1966 na vila de Óbidos. O autarca local, homem de mão do regime, pediu a José Aurélio para criar uma escultura em honra dos heróis do Ultramar, uma guerra com a qual, o escultor garante, “não poderia concordar”. Desenhou a peça maciça com base no verso de Luís de Camões «Aqueles que vão da lei da morte se vão libertando». Uma mão emerge de um corpo soterrado, levado pela guerra. Ainda hoje pode ser vista em Óbidos. “A mão converte-se num espírito de quem parte” e numa outra perspetiva, “a mão torna-se pomba branca”. Uma soma de oposições, diálogos presentes em muitas das suas peças.

A “Mão” de Óbidos foi apenas o primeiro exemplo que trabalhos encomendados para diferentes locais, muitas vezes com temas que colocaram à prova a criatividade do escultor, dono de “uma liberdade muito consciente” garante Gonçalo Tarquínio. O jovem amigo de José Aurélio, partilha com o artista viagens de carro com frequência. Sobre a obra do companheiro garante, este tem “sempre com grande responsabilidade sobre a identidade dos locais” e das culturas. Uma obra feita de gente e para ser vista por muita gente. “Nunca industrializei aquilo que faço. Muitos colegas meus criaram um vício que abomino: partem sempre do mesmo modelo, uma forma de fazer as coisas que as tornam todas idênticas. Para mim cada uma deve ser igual a si própria, conforme o local, o momento”, refere o escultor.

Aos 38 anos, o 25 de Abril abriu na carreira do autor um novo momento. “Queríamos construir um país novo”. José Aurélio haveria de assumir, juntamente com um grupo de obidenses, a gestão da autarquia local, através da Comissão Democrática então criada. Seguiram-se meses de trabalho numa vila esquecida pelo tempo, onde os sinais do terramoto de 1755 ainda se faziam notar em pleno século XX. A primeira eleição democrática haveria no entanto de afastar José Aurélio do poder local, quando a Aliança Povo Unido (APU), pela qual integrou a equipa candidata à câmara municipal, recolheu apenas sete votos. “Fechei a porta de casa e saí de Óbidos naquele mesmo dia”.

Lugar de criação

«Sôbolos ferros que vão / por babilónia me achei / e lá passando encontrei / bronzes, arames, latão, / chumbo, zinco, ouro de lei. // vi chapas, restos de molas, / pedras brancas e cinzentas, / superfícies ferrugentas, / vi pirâmides e bolas, / vi memórias de tormentas, //(…)». As palavras de Vasco Graça Moura em Variações Metálicas, livro que dedicou ao amigo escultor, descrevem a “babilônia”, o local onde José Aurélio se refugiaria depois da experiência em Óbidos e de um período de trabalho em Santa Maria da Feira.

“É um encanto vê-lo trabalhar no torno. Faz-me recordar as memórias que tenho dos seus tios, funileiros em Alcobaça, a forma com vergavam os metais para os utensílios.” Chamavam-se Hipólitos, diz Jorge Barros, os tios de “Zeca” que faziam utensílios em zinco e em lata. “Visualmente o eu trabalho é muito semelhante, tanto no produto como no processo, no ferro ou no fogo”. Os metais preciosos obrigam ao trabalho minucioso das pequenas escalas. Minúcia também presente nas obras públicas de grande dimensão. «A dimensão não lhe retira o sentido táctil, delicado» escreveu o amigo Rogério Ribeiro.

A casa e atelier, a Quinta da Preta, é “caso único com milhares de peças, algumas retiradas de sucateiras, criações feitas não a partir do nada, mas daquilo que existe” garante o amigo Charters Monteiro. A sua estreita relação com os metais “do mais precioso ao mais vulgar”, pode ser atestada na sua obra de joalharia. “As jóias que fiz, foram quase todas para oferecer a mulheres de quem gostei. Eram feitas com aquele objetivo, ora hoje já não me apetece fazer jóias. Amar uma mulher é uma coisa importante na vida de um homem. Depois de velho já não temos as mesmas forças”, sugere José Aurélio.

O mosteiro e o armazém

A poucos minutos da Quinta da Preta, o Rossio de Alcobaça apresenta aos visitantes o mosteiro. A imagem do espaço criado pelos monges cistercienses foi, ao longo da vida, uma inspiração para o escultor. O amigo, Carlos Gil Moreira partilhou com José Aurélio vários trabalhos sobre Alcobaça e o seu património. O arquiteto recorda uma grande exposição em 1984 recordando a presença da Ordem de Cister como um dos momentos mais importantes da marca do artista na cidade. Junto ao Rossio diz, uma das obras do escultor desapareceu no entanto início da década de 2000. A intervenção junto ao Mosteiro de Santa Maria, desenhada pelo também alcobacense Gonçalo Byrne, haveria de retirar da praça a calçada desenhada pelo escultor, recorda Carlos Gil Moreira. Na calçada estava inscrita uma homenagem aos canteiros que ajudaram na construção do mosteiro, representados pelos símbolos e assinaturas que deixaram gravados na pedra. Uma homenagem aos homens que ajudaram na construção na obra, executantes esquecidos pela história.

A poucos metros, num lugar de passagem antes da subida para o castelo, o espaço que José Aurélio, “quis deixar à sua cidade”, segundo Jorge Barros. Na porta de entrada do espaço labiríntico, estão inscritas as sete artes, mas também uma representação da alquimia, no canto superior esquerdo da porta maciça. “Penso muitas vezes na evolução do homem, somos as mesmas bestas. Continuamos a depender dos nossos vícios, das nossas coisas negativas, dependendo disso da mesma forma como podemos ser criaturas bestiais, que querem conquistar o espaço”. O restante de alquimia que José Aurélio diz ter está expresso na sua obra, realizada vestido de “escultor, pensador, filósofo, poeta, mecânico e carpinteiro. Quando penso nas coisas vou até onde me deixam”.

Um dos escultores mais profícuos das últimas décadas em Portugal, apelidado como brilhante na medalhística e joalharia, com obras na “efémera” cerâmica, José Aurélio sempre teve dificuldade, talvez por uma questão de temperamento, resume Jorge Barros, em “fazer escola”. “Por individualismo, por dificuldades de relação com as escolas e outros artistas”, refere o amigo. A ausência de apoios locais, uma relação conturbada com a autarquia de Alcobaça durante anos, vetou o espaço do Armazém das Artes a um encerramento prematuro. Entre os amigos e conhecidos, a relação de José Aurélio com a cidade, as suas memórias e a agitação provocada pelo seu património e riqueza, não vão deixar o artista inerte e a porta encerrada.

Rogério Ribeiro, artista plástico e amigo, deixou-lhe como memória palavras em livro. «A unidade fundida de uma vida dedicada, cega e apaixonada ao seu trabalho sem limites de tempo e esforço são ponto assente e indiscutível da sua maneira de estar e de se assumir como cidadão nos ventos do mundo”.

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