Reportagem: Para o último pastor de Chãos há futuro no horizonte

Raul sobe a serra sem temer o fim do dia. O último pastor de Chãos faz aquele percurso diariamente há seis anos. Na Serra dos Candeeiros, à companhia habitual de 220 cabras ribatejanas, juntam-se um velho cão e, quase todas as semanas, um grupo de visitantes. O projeto vai de vento em poupa: o número de cabeças de gado do rebanho irá duplicar até ao final do ano. 






















O último pastor de Chãos regressou ao primeiro trabalho que teve na vida há seis anos. “Teve outros”, mas este ficou-lhe na memória. Até ao final do ano 2016 o rebanho comunitário da Cooperativa Terra Chã, em Alcobertas, Rio Maior, irá duplicar com a construção do novo curral. Raul, o pastor, garante que os novos animais não irão causar transtorno. Age com naturalidade porque “está habituado” à companhia em grande número, não só dos animais, mas também de curiosos.


A “Rota dos Pastores” conduz mensalmente dezenas de visitantes pela encosta da Serra dos Candeeiros. Organizada pela Cooperativa Terra Chã, permitiu manter o legado dos pastores que durante séculos por ali levaram os seus grupos de animais. António Frazão, responsável da cooperativa, refere que no inicio do projeto procuraram cativar um velho pastor da aldeia mas disponibilidade deste tornou-se no entanto parca para as necessidades crescentes do projeto até que a cooperativa procurou uma solução própria: foi adquirido um rebanho próprio, de cabras ribatejanas, e anunciada a disponibilidade para receber um novo pastor. O proposto não ficava no entanto pela pastorícia. “O pastor deve ter outras áreas de interesse que não só tomar conta dos animais. Enquanto o faz, é um observador atento da natureza: pode fazer os registos do período em que as plantas florescem, qual o período, os locais, onde as aves nidificam. Um conhecimento que pode partilhar depois com os visitantes”, conta António Frazão, responsável da Cooperativa Terra Chã. 

Numa primeira fase, conta António Frazão, a cooperativa recebe “60 currículos de jovens licenciados”. Após a passagem de vários candidatos pelo trabalho a cooperativa encontrou Raul, outrora pastor na zona de São Sebastião, Rio Maior. “Não temos um licenciado académico, mas alguém que ganhou com experiência da vida” garante António Frazão. 

Foi a conservação da fauna e flora locais que levou a Cooperativa Terra Chã a criar o projeto em 2008. “Verificamos que os habitats no topo da serra estavam a ser alterados. Os matos estavam a invadir os espaços o que levavam algumas espécies de aves a abandonar os habitats” refere António Frazão. Uma das aves que desapareceu era o “ícone” local: a gralha de bico vermelho. Um projeto da Quercus com a Vodafone permitiu o arranque do trabalho de conservação da cooperativa. Assim surgiu a “Rota dos Pastores” que hoje se repete regulamente. 


Até à Lagoa dos Candeeiros

O horizonte do lado leste da Serra dos Candeeiros não há dias iguais. O grupo de caminhantes que se junta para mais uma visita a Raul, descobre a duzena dos dias de pastoríca logo nos primeiros metros da subida. As nuvens pesadas que manhã cedo preenchiam o céu tornaram-se um aguaceiro continuo. À medida que sobem a vista encurta, ao invés do tradicional retrato verdejante do parque natural. 

No sopé da serra dos Candeeiros, a freguesia de Alcobertas conheceu em tempos dezenas de rebanhos. Diariamente percorriam a serra até ao topo, onde no verão uma pequena lagoa dava de beber aos animais, mas também, às populações de ambos os lados da serra. Ali se encontravam pastores da zona de Benedita, concelho de Alcobaça, e de Alcobertas, concelho de Rio Maior. A Lagoa dos Candeeiros ou Lagoa dos Medeiros, como lhe chamavam “os antigos” segundo António Frazão, é o destino final da viagem feita pelos visitantes da Rota dos Pastores.

O grupo de visitantes daquele dia reúne-se no sopé da serra. Isabel vem de Coimbra e descobriu o projeto através de uma amiga. Traz consigo a filha de 9 anos. Espera que o percurso que se segue, cerca de 7km, se torne uma “forma diferente entender a realidade da serra, mas de servir também de alerta para a Isabel tomar consciência sobre a natureza e a sua conservação”, diz. “Um contacto direto, diferente do que pode aprender na escola”. Fernanda de Alcobaça, tem 61 anos. Gosta da fauna, tem pena que a vista se perca naquele dia. Uma experiência completa, que "recomenda". Perde-se o olhar na geologia, numa serra "que se parece com um queijo", onde ao longo de milhares de anos se formaram covas fundas, algares, possíveis de avistar no topo. 

O cajado, distribuído ainda no sopé da serra, irá mais tarde mostra-se útil para os visitantes. A chuva e o vento acompanham a subida. “Elas não gostam do vento nas orelhas” conta Raul, “é o pior para elas”, pior de que a chuva, a falta de vista, que apenas incomoda os visitantes. Às costas levam um saco de serapilheira. Recria tradições de outros tempos e foi produzido localmente, na associação. Chouriço, pão-alvo, broa de milho, queijo de cabra produzido com o leite do rebanho em Santarém, resultado da multiplicação de secções da cooperativa fundada em 2000 numa terra com pouco mais de 150 habitantes.

Na visita que acompanhamos para além de um grupo de curiosos há também dois jovens envolvidos num projeto de voluntariado internacional do programa Erasmus. Florian confessa que gostava de experimentar o trabalho de pastor. “Quem sabe depois de terminar o estágio regressar a Portugal e experimentar”. Tem regresso marcado a Toulon, sul de França, em junho. Um pouco mais tarde Günes regressará ao sul da Turquia, onde a esperam as temperaturas áridas de uma região conhecida pela produção de algodão, junto à fronteira com a Síria. Sobre Portugal, diz-nos, surpreende-a a “tolerância a simpatia das gentes”.

A atenção de Raul vai se dividindo entre o vasto grupo de animais e os visitantes. É necessária atenção a cada passo para evitar uma queda indesejada. A chuva acompanha o grupo no percurso até à lagoa no topo da serra. A mais jovem do grupo encontra por um momento abrigo feito na forma de uma rocha esculpida. A guarda é curta, "só dá para um" segundo António Frazão. No entanto não haverá tempo para ali permanecer. 

A serra está habituada a regressos segundo António Frazão. Foram avistadas recentemente gralhas de bico vermelho na serra. Regressaram após vários anos sem ser avistadas. O próximo passo para a conservação da espécie passa por identificar os locais de nidificação e perceber quais os seus hábitos, para quem não volte a desaparecer da paisagem.“Aqui tudo está ligado” diz António Frazão. Os trilhos desenhados pela passagem do rebanho servem de corte contra incêndios. Dez vedações de 100 metros quadrados, resguardam vegetação do rebanho. São indicadores para que seja possível perceber o impacto do rebanho na fauna local. Avalia-se ainda o impacto do rebanho na produção de biomassa. Recentemente, alunos de mestrado trabalharam ali sobre a fauna local, no caso sobre as orquídeas em área pastoreada e não pastoreada. 

A primeira paragem é feita junto da Lagoa dos Candeeiros, chamado pelos "antigos" como Lagoa dos Medeiros. Outrora ponto de encontro de pastores, o único local onde existia água durante o verão. Mandar a pedra, o jogo do pau, o jogo da malha eram atividades que se dizia, ocupavam o tempo dos transeuntes. A lagoa foi agora recuperada para reter água durante o ano, não só para o rebanho mas também para a fauna local. Existem bebedouros fora da vedação, permitindo o acesso dos animais. Há ainda uma pequena lagoa a jusante, abastecida por uma mangueira. o " chafurdo" evita que o javali entre na lagoa e danifique as proteções. 

Abrigados por uma pequena casa de construção recente os visitantes aproveitam o almoço que lhes carregou as costas pela subida. Raul conta que este foi “o seu primeiro emprego” ainda menino, na freguesia de São Sebastião. Passara depois por outros trabalhos como a construção civil mas acabaria por aceitar regressar à pastorícia com a Terra Chã. Ser pastor da aldeia de Chãos ou na Serra dos Candeeiros deixou há muito de ser uma tarefa simples. A rotina diária é interrompida com frequência pelos curiosos, mas Raul não se importa. Aprecia a conversa de ocasião. Muitos dos visitantes vêm em busca de uma visão romântica sobre aquele trabalho. Essa visão foi no entanto substituída por uma série de objetivos encadeados, que fazem do pastor uma figura central num projeto de conservação da natureza raro em Portugal. O ar que ali se respira trás frescura à serra e o negócio, a avaliar pelo número crescente de cabeças de gado, só tem por crise os dias de mau humor do pastor ou da natureza. 

Publicada em "O Ribatejo"
Tiago Santos

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