Benedita: Quando a vila recebeu refugiados

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Benedita: Quando a vila recebeu refugiados judeus

Para Maria do Couto Nicolau eram apenas duas novas “irmãs” para brincar durante o verão, em 1947. A única questão é que tinham de “falar por gestos”: é que nem ela nem ninguém na Benedita falavam alemão.

Iohana e Margareth podiam ser nomes difíceis de pronunciar para a Benedita dos anos 40 mas apesar da passagem curta, com refugiadas, as duas jovens judias haveriam de ter vontade de regressar um dia em busca dos “pais portugueses”. O reencontro entre as então três meninas, nunca aconteceu.

Mergulhado no Estado Novo, Portugal recebeu durante o final dos anos trinta e ao longo da década de quarenta milhares de refugiados judeus vindos do centro da Europa. Ponto de passagem ou abrigo temporário, o país, apesar das condições de vida de então, não deixou de receber migrantes. Também na Benedita, através da Cáritas, contou-nos Maria do Couto Nicolau, chegaram no verão de 1947 várias jovens judias, vindas de uma Áustria em convulsão.

“Recordo-me da chegada delas. Vinham de barco, muito desarranjadas, despenteadas. Traziam pouca roupa e tiveram de ser os meus tios a dar-lhes banho e roupa para vestir”. Maria vivia com os tios, tinha então “9 ou 10 anos”. As memórias são de quem procurava aproveitar todo o tempo para brincar, e duas novas “irmãs” eram bem-vindas.

Iohana e Margareth não eram irmãs, mas não se largavam desde a viagem de barco. “Recusavam-se a ficar longe uma da outra durante a noite” pelo que ficaram ambas em casa dos tios de Maria do Couto. O mau estado em que chegaram a Portugal era resultado de uma navio repleto, onde centenas de jovens se acotovelam vindos do centro da Europa.

A Áustria passava nessa fase por um período de ocupação por parte das forças aliadas. As suas regiões seriam divididas entre gestão inglesa, francesa, norte-americana e soviética. A incerteza sobre o futuro, o medo da ocupação soviética e as condições precárias do pós-guerra teriam levado as famílias a enviar para países periféricos como Portugal, os mais jovens para encontrarem abrigo durante alguns períodos de tempo, sobretudo entre as famílias da classe média. Em Portugal a Cáritas Diocesana terá sido responsável pela colocação dos jovens nas familiar, no caso da Benedita apensa raparigas, para ai serem entregues a famílias de acolhimento.

Hospitalidade 

A recepção da população local não poderia ter sido melhor refere Maria do Couto Nicolau. As jovens foram levadas a conhecer a região, indo ao Santuário de Fátima, à Marina Grande “para verem como se fazia o vidro” conta. “Nós tínhamos uma loja e as pessoas iam lá e metiam-se com elas. Eram muito comunicativas e muito alegres. Trepavam por cima de tudo. Trepavam por cima das vigas quando a loja estava em obras e um dia alguém ao vê-las disse: São umas cabritas! E elas responderam: Cabritas e tu Cabriu!! Resposta sempre à letra” recorda Maria do Couto.

Depois do trabalho de distribuição feito pela igreja, fez-se valer a tradicional hospitalidade portuguesa. Mas os tempos eram difíceis recorda Maria do Couto. A realidade portuguesa, na província de um país mergulhado no Estado Novo, era bem diferente da vida da classe média austríaca de onde vinham as jovens refugiadas.
“Em Portugal não havia fome mas havia miséria, gente com pouco que comer. Recordo-me de nos pedirem um dia manteiga. Os meus tios eram pessoas do comercio, lá em casa havia até marmelada, mas não se usava, ou não era comum, a manteiga. Elas faziam o gesto: manteiga no pão, manteiga no pão!”, explica. “Um dia duas meninas que estavam na casa de um vizinho meu, o senhor António Henriques, apareceram com um pão caseiro barrado. Madrinha, Madrinha gritavam elas!” A vizinha havia barrado banha de porco no pão. “Isso é banha, banha de porco também eu tenho! Era banha de porco barrada com colorau, banha derretida em quente, mas ficaram contentes, para elas era manteiga. Por ai se vê que o nível de vida a que elas estavam habituadas não tinha nada que ver com o nosso”, refere.

Na Benedita instalaram-se apenas meninas diz-nos Maria do Couto Nicolau. “Estavam duas na minha casa, duas na casa do meu vizinho António Henriques, e várias na casa do senhor José Almeida, do regedor da freguesia José Delgado, José Guerra na Pedra Redonda, Engrácia Rebelo o senhor Chico Fernandes na Cabecinha, que também recebeu uma rapariga. Só meninas”.

“Elas falavam alemão, portanto, comunicação, só por gestos. Recordo-me de que quando queriam chamar tonta a uma pessoa diziam: tu dess, dess! Tu dess!”. Maria andava na escola primaria, teria 9 ou 10 anos e as jovens iam acompanha-la à escola. “Levavam o seu caderninho e elas iam fazendo as coisas como conseguiam” recorda.

Se a religião num foi um entrave no contacto com a comunidade, até porque “eram levadas à missa aos domingos como toda a gente”, haviam outros pequenos hábitos diferentes. “Elas gostavam de brincar com as massarocas do milho. Uma coisa que nos admirava era a forma como comiam o tomate, cru, tirado dos terrenos, e comiam à dentada, à mão-cheia! Os adultos admiravam-se daquele hábito que eram uma coisa rara de acontecer por cá”, conta.

Depois da partida

Acabaram por partir no final do verão regressando a uma Áustria. “O padre Susano acompanhou as quando foram embora para o seu país”. Levaram vários carros cheios até Lisboa e fazendo-as embarcar na Gare Marítima de Alcântara e seguiram de barco.

“Depois de elas se terem ido embora, recebemos uma carta da família, cerca de um ano depois. Queriam que as voltássemos a receber, elas tinham gostado muito de cá estar e queriam cá voltar para passar algum tempo. Chamavam aos meus tios os “pais portugueses”.

A carta em alemão não teve resposta. Terão sido vários os pedidos, tanto da família de Iohana como da família de Magareth. “O Meu padrinho decidiu não responder às cartas. Elas estavam a crescer, a começar a adolescência, exigiam outras coisas, outra vida que nós cá não podíamos garantir e por isso ele acho melhor não responder. Ficamos com pena, sobretudo eu, mas eles achavam que não tinham condições” refere.

Conta ainda que o padrinho nas suas muitas viagens a Lisboa levava as cartas a um cliente que falava alemão e que lhas traduzia. “Eram agradecimentos, diziam que gostavam muito dos pais portugueses e que tinham muitas saudades de Portugal”.

Nem tudo foi no entanto perfeito. Duas jovens que viviam na casa do vizinho adoeceram durante a viagem para Portugal. As más condições no transporte eram propicias a doenças contagiosas. As duas jovens ficaram com mazelas, que a ausência de serviços de saúde em Portugal em nada ajudou a sarar. Em resposta, quando regressaram à Áustria, os país das jovens queixaram-se por carta da forma como encontraram as filhas com palavras duras para com quem as tinha recebido.

Entre recordações mais ou menos duras sobram os registos fotográficos. O reencontro nunca aconteceu. Maria do Couto Nicolau contou à Benedita FM que as duas austríacas regressaram a Portugal à procura da família que lhe concedeu um verão longe dos conflitos da Áustria do final da 2ª Grande Guerra. Não se cruzaram, apesar de Iohana e Margareth terem estado na Benedita, próximo da casa que as acolheu.

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