Rio Maior: Um Tesouro privado que Pacheco Pereira quer público

Encontradas no lixo, um conjunto de cartas de um casal, trocadas entre 1934 e 1943, compõem agora um livro. 

"Amorzinho", um relato sobre o país nas décadas de trinta e quarenta do século passado. Cartas deitadas fora por alguém, agora colocadas a par de primeiras edições de Voltaire na Biblioteca e Arquivo de Pacheco Pereira, na Vila da Marmeleira, em Rio Maior.

À saída do antigo posto da GNR, hoje convertido em arquivo, um dos visitantes, curioso, pergunta ao anfitrião o que pode ter interesse para acrescentar à sua coleção, por ora privada. "Tudo interessa, tudo importa", responde Pacheco Pereira. "Mesmo quando recebo uma biblioteca, daquelas que duplicam um período histórico que aqui temos, sempre, pelo menos 10%, acabam por ser coisas novas. Mesmo os manuscritos, não deitem fora", apela. 

São hoje cerca de 220 mil as entradas registadas na Biblioteca e Arquivo instalada no centro da vila ribatejana. E são comuns as visitas de curiosos, sobretudo em excursões organizadas. As portas estão também abertas para investigadores segundo o anfitrião. De primeiras edições de Voltaire, até cartazes de campanha presidencial portuguesa passando ainda pelos recém-chegados artigos sobre o Livre e outros movimentos da esquerda portuguesa, enviados pela "Ler, Devagar", associação lisboeta, chegam regularmente remessas enviadas por quem se juntou à causa. E também voluntários para trabalharem no arquivos."Chegam a ser cerca de 140 os voluntários, embora em funções diferentes, oriundos de todo o país", em determinados momentos do ano, descreve o anfitrião, na visita que acompanhamos. 

O arquivo e a Marmeleira

Entre o casario da Marmeleira, à sombra da Serra dos Candeeiros, fica o edifício - melhor seria dizer o conjunto de edifícios - que acolhe a biblioteca arquivo. Passa despercebido, junto do café, roda-viva, onde ao domingo de manhã se juntam alguns compadres. Não ouvimos o sino para a missa, toda gente sabe a que horas começa. 


A manhã de domingo traz consigo um grupo de visitantes, curiosos. Chegam junto do largo, onde se pode ler uma inscrição no coreto: "Obra realizada pela Junta de Freguesia com o apoio do Câmara Municipal de Rio Maior, empresas privadas e população - Reconhecimento e homenagem a todos os músicos da nossa terra". As placas das ruas circundantes são palavrosas. Largas descrições onde a curiosidade dos transeuntes é captada pela cor azul, de tom escuro, com letras brancas ou negras. As ruas têm nomes de professores, gente importante para uma terra, outrora ciosamente republicana.

Mais à frente, dali a poucos metros, uma placa indica a entrada no labirinto, por ora pessoal, de Pacheco Pereira.

"Esta era uma casa agrícola do século XVIII" "Biblioteca e arquivo muito sui generis", comenta à chegada dos curiosos. "É privado, mas o meu objetivo é torna-lo público. Muito provavelmente passará primeiro por uma associação cultural", refere. 

A biblioteca e gosto pela organização vêm de longe. Desde os 12 anos que aprendeu com o pai a organizar as obras. Não tem qualquer ligação familiar à Vila de Marmeleira, mas foi ali que o portuense encontrou o espaço para a vasta coleção de livros e documentação vária. 

Na sua habitação particular, onde faz as boas vindas aos visitantes, entrou já, parte da biblioteca. "O problema aqui é a falta de espaço". Para além de grandes estantes organizadas, podem ver-se no chão várias pilhas de livros, que encurtam uma escadaria de madeira que conduz a um dos primeiros pontos de interesse.

Uma antiga adega recebe parte da coleção do arquivo. É naquele lugar que é feita grande parte da digitalização de documentos. Pacheco Pereira apresenta aos visitantes um objeto curioso: o mealheiro de um movimento sionista, com a estrela de David inscrita. O olhar dos transeuntes perde-se entretanto pelas capas de jornais e revistas. "A austeridade não é fim mas o processo". A manchete poderia ter acabado de chegar, mas não, é de 1991, e ao lado, um jornal de 1976 de aspeto moderno.


"Foram na maioria dos casos tratados – ou seja – foram ao congelador para matar o bicho. Há um certo controlo, não total, sobretudo com os livros mais antigos" refere Pacheco Pereira. A sala é climatizada, o creme Nívea barrado nas capas estende a vida útil das obras por uma centena de anos.

A visita é feita em circulo. Um circuito entre os vários espaços que Pacheco Pereira foi adquirindo na vila, com ligações entre si. Um dos espaços por onde se estende o arquivo serviu em tempos de escola primária, outro de lagar.

Chegamos a uma outra sala. O escritório no primeiro andar, improvisado onde, pelas escadas se estende uma correnteza de livros. Diz-nos que estão ordenados por altura das escadas onde se instalaram, à espera de chegar ao seu escritório para ser organizados e recolocados. Abaixo, junto à porta que dá para a rua, duas garrafas de vinho fechadas, tinto e branco. Provavelmente oferta de um dos voluntários que por ali deixa caixas para servir de arrumação, o merceeiro local. Ficaram junto à porta, porventura ainda não foram descobertas.

É no escritório que José Pacheco Pereira prepara mais uma edição da coleção sobre Álvaro Cunhal. O último capítulo será em muito, recolhido por ali. Milhares de entradas catalogadas, registos, recortes, atas de reuniões, documentos manuscritos. O arquivo representa provavelmente o mais importante conjunto de documentação sobre o movimento sindical em Portugal.

Numa das salas confrontam-se, "ironicamente", os arquivos de Francisco Pinto Balsemão e de Emídio Rangel - outrora patrão e empregado desavindos. As coleções estão instaladas numa antiga escola primária, que serviria mais tarde de posto da GNR, onde existiram até celas, onde hoje se guardam livros. Um pouco mais à frente os registos pessoais de Sá Carneiro. Um pouco antes, em cima de uma mesa, mais artefactos curiosos: a caneca erótica de Guterres ou o bulldog inglês do UKIP - "Antes bulldog inglês do que couve-de-bruxelas". No primeiro andar morou em tempos um casal de professores. Hoje há espaço para investigadores ali pernoitarem, caso necessário. 


Biblioteca, arquivo, depósito ordenado, pode um dia, "deve um dia", diz Pacheco Pereira, tornar-se público por via de uma associação. Todas as obras podem hoje ser consultadas através do site Ephemera, onde estão as capas digitalizadas. A atual lei das fundações impediu a constituição de uma organização deste tipo. O mentor recusa a possibilidade para já, enquanto a lei não for alterada. O caminho diz, será mesmo passar por tornar pública a até aqui coleção privada.

Cerca de 220 mil entradas, desde livros até à caneca pecaminosa de António Guterres. O "ser mais pacifico do mundo" segundo Pacheco Pereira, que provavelmente, diz aos visitantes, nem sonha que aquela caneca erótica existe. Foi adereço de campanha, tal como muitos dos artigos que ali chegaram e por ali se instalaram.

Mas se o erotismo faz parte da vida, e da história. Das histórias que no arquivo se acotovelam. Em "Amorzinho", obra editada pela Tinta da China, com base em cartas entre um casal de amantes no século XX português, encontramos um retrato daquilo que pode ser um arquivo sobre a história contemporânea. Cartas de gente comum, com vidas comuns, que ajudam a descrever uma realidade especifica de uma zona do país, de um momento histórico particular, físico, social, cultural. "Tudo importa".


"Amorzinho" – Guarda o que não presta, encontrarás o que é preciso 

Entre os milhares de histórias, ficcionadas ou não, que podem ser encontradas no arquivo, o de um casal de namorados, Maria de Lourdes e Alfredo, escreveu mais de seiscentas cartas, recentemente encontradas no lixo. Cartas de cidadãos comuns, que retratam a vida e cultura portuguesas naquela época. 

A correspondência entre uma costureira e um empregado de escritório, sobre encontros e desencontros de um casal, primeiro de namorados, depois entre marido e mulher. Os dois viviam grande parte do tempo separados, encontrando nas cartas forma de falar sobre os filmes que vêem, o pouco que leem, do quotidiano à «embriaguez», ou seja, do sexo, segundo Pacheco Pereira, "sobre o qual ele sabe demais e ela parece saber de menos". Cartas escritas com erros ortográficos, sobretudo da jovem, que, ao longo do tempo mudam, e são agora editadas em livro pela Tinta da China, Coleção Ephemera, dirigida por José Pacheco Pereira. 

Um livro que pode servir de metáfora para descrever grande parte do valor que podemos encontrar na Biblioteca e Arquivo Pacheco Pereira, na Vila da Marmeleira, arquivo do qual as cartas fizeram parte, depois de encontradas por Pacheco Pereira.


Tiago Santos
Publicado em "O Ribatejo"
Reportagem audio Benedita FM


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